domingo, 14 de junho de 2020

A linha da frente.

Nos últimos meses a expressão "linha da frente" tornou-se frequente. Nesta linha da frente conta-se com o trabalho, força, dedicação e altruísmo de diferentes profissões, destacando-se os profissionais de saúde. Mas eu, puxando a brasa à minha sardinha, incluo fortemente os profissionais de todas as instituições particulares de solidariedade social. E o que quero deixar claro é que a linha da frente não existe apenas hoje em tempos de pandemia, a linha da frente é diária e contínua. Sempre em prol do conforto, segurança e bem-estar dos nossos utentes e famílias.
A minha tese de mestrado foi sobre o processo de institucionalização porque sempre entendi que este é um processo complexo. Exige uma capacidade de adaptação e resiliência incríveis. Seja para os utentes, seja para as famílias. E esta exigência alarga-se a respostas sociais abertas e semi-abertas, como o Centro de Dia e Serviço de Apoio Domiciliário. Implica reconhecer e aceitar que se precisa de ajuda. Implica abrir a sua intimidade a terceiros que não se conhece de lado nenhum ou que até se conhece, o que torna tudo mais difícil. Implica mudar de vida. Implica deixar para trás princípios e ideias defendidos durante muito tempo. Implica ir contra a vontade da família. Implica adaptar a uma rotina que não é a nossa. Implica cumprir regras de uma vida em comunidade institucional/ organizacional. E este processo de adaptação é constante e dura anos. Dura desde que se é admitido até que se morre.
Mas há também o lado em que se ganha uma nova família, uma nova oportunidade de viver, uma forma de passar os últimos dias da nossa vida com dignidade. E através deste processo criam-se laços e memórias inesquecíveis que nos fazem crescer e ser pessoas melhores. Nós, profissionais, damos a mão, facilitamos contactos, promovemos relações, defendemos direitos, prestamos cuidados, abraçamos, ajudamos a resolver problemas. Estamos lá. Todos os dias.



A verdade é que a cena de separar a vida profissional da vida pessoal é uma treta! É difícil. Há dias em que é inevitável fechar a porta e fingir que amanhã quando voltar estará tudo igual. Com todas estas palavras dizer-vos que a linha da frente é estar ativo 365 dias/ano, 24 horas/dia. Porque a história daqueles com quem trabalho, utentes e colegas, faz também parte da minha história. E isto é estar na linha da frente. Não só em tempo de pandemia. Mas TODOS os dias.
E é por este pormenor, que ninguém vê, que sou tão rica. Porque todos os dias construo um livro de histórias e memórias nas quais, inevitavelmente, sou atriz principal.


sábado, 6 de junho de 2020

A experiência do internato.

Todos sabemos que em tempos de crise, cada um de nós, à sua maneira e com aquilo que tem de melhor, assume as circunstâncias como uma guerra. Sim, uma guerra. Assim se tem revelado a pandemia COVID-19. Hoje vivemos num permanente sobressalto porque não vemos o inimigo. Sabemos que ele existe e anda por aí, mas não o conseguimos ver, nem ouvir.
A decisão de trabalharmos em regime de internato foi discutida e refletida. Todos consideramos que a dada altura as medidas tinham de apertar. Formaram-se duas equipas de oito elementos em que quatro trabalhavam durante  dia e outras quatro durante a noite no período de seis dias. Falo em turnos de 12 horas. Equipas formadas, mãos à obra!
Eu, pessoalmente, tive dificuldade em assumir que iria. Estaria a mentir se dissesse que tomei esta decisão de ânimo leve. Trabalhar em regime de internato implicava deixar o meu marido e a minha casa. E foi difícil. Até que, por cima da camisola que visto todos os dias, vesti uma capa. Esta capa fortaleceu o espírito de missão e compromisso para com os meus utentes e equipa. E a meados de Abril, entrei às 06h da manhã. Não, não estive sentada na minha mesa. Estive a prestar cuidados. Dei banhos, mudei fraldas, fiz limpezas, ajudei na alimentação. Preocupava-me a falta de jeito. Porque é preciso saber cuidar. E quando falo em cuidar, não falo apenas nos cuidados básicos. Falo em deixar a minha vida pessoal à porta, em ser superior às minhas fraquezas emocionais e físicas. Receei que me julgassem por na prática não saber tanto como na teoria e nas orientações que escrevo e defendo. Desde o primeiro minuto que fui respeitada, apoiada e aceite. Trabalhei em equipa, sempre. Senti dores de pernas e braços, sim, porque fisicamente é esgotante. E cantei tanto que cheguei ao fim dos seis dias, de todas as vezes, rouca. Porque cuidar é proporcionar conforto, segurança e bem-estar. E eis que o meu primeiro desafio foi ultrapassado com sucesso!
Trabalhar em internato implica também viver em comunidade. Sou muito grata ao Grupo Folclórico de Alvarães por nos ter cedido as suas instalações. Saíamos às 18h00, que nunca eram 18h porque no fim do turno havia sempre conversa e informação para trocar com quem fazia noite. Levavamos para o alojamento o jantar sempre tão bem confecionado pelas nossas cozinheiras. E sempre eramos brindadas com miminhos. Flores, chocolates, mensagens. Sentávamo-nos e ríamo-nos com fartura do nosso dia! Exaustas mas a precisar de desanuviar. Também as nossas famílias nos deixavam mimos à porta! E sim, doeu ver o meu Manel da varanda, sem o poder abraçar. Mas ele assumiu comigo esta missão, e isso deu-me muito alento! Nas horas de almoço entre turnos contávamos peripécias vividas. No alojamento, partilhávamos coisas da nossa vida pessoal que na correria do nosso dia-a-dia nunca temos tempo ou oportunidade. Fiquei a conhecer muito melhor as pessoas com quem trabalhei. E digo-vos, tenho comigo mulheres do caraças! E às 05h00 era eu o despertador daquela casa, havia sempre música e dança. E até a minha boa disposição matinal foi sempre bem aceite.
Não foi só com as minhas colegas que a relação foi fortalecida. Através da prestação de cuidados diretos, ganhei maior confiança dos meus utentes. Conheci-os melhor. Aproximei-me e apeguei-me ainda mais às suas histórias, vivências e características. Com base nesta relação mais forte, o respeito das famílias para connosco foi crescendo também. De maneira geral, reconheceram sempre o esforço que fizemos para proteger os seus familiares. Recebi abraços pelo telefone, palavras de gratidão e reconhecimento, ainda que só eu o visse ou sentisse.



Tudo isto para vos dizer que tenho crescido muito nestes tempos. Foi com esta crise que aumentamos  a coesão grupal, embora consciente de que esta se vá dissipando ao longo do tempo. Permitiu-me olhar para o mundo com maior leveza, a encarar a vida como ela é, a ser fiel aos meus pensamentos através das minhas palavras e a permitir-me viver.
Não espero aplausos à janela. Não espero um tapete vermelho. Não espero que me apelidem de herói. Espero que, apesar das coisas más que a COVID-19 trouxe, todos consigamos crescer um pouco. Espero que de agora em diante saibamos sorrir com os olhos e que este sorriso seja autêntico. Depois disto tudo… Nunca mais serei a mesma!

sábado, 18 de abril de 2020

Viver em tempo de pandemia... Num lar de idosos!

Quando dizem que na universidade não aprendemos a trabalhar, é verdade. E a verdade depois desta é que a vida, sim a vida, é a maior escola. E neste último mês e meio tenho aprendido mais do que nos meus jovens 28 anos de vida. Hoje tomo consciência do que quero e do que não quero. Hoje vejo-me como alguém que procura ser infinitas vezes mais do que aquilo que é. Hoje não sei viver com isto do COVID. Mas tenho uma certeza. Se isto está a acontecer é porque vamos aprender algo daqui. Porque, na verdade, como o filme "Os Dois Papas" partilha "Não há coincidências. Estamos nas mãos de Deus".



No início de Março estava nos Açores de férias. Regressei e estava tudo bem. Acreditava e defendia que isto do COVID era só um exagero. Trabalhei dois dias dessa semana porque retomei na 5ªfeira. Sábado, 07 de Março, liguei os dados móveis e tinha imensas mensagens. As visitas no lar foram suspensas. O coração apertou! Não tive tempo de preparar as famílias para isto. Pior do que tudo... Não tive tempo de preparar os meus utentes para isto. Seguiram-se reuniões sem fim, medidas de contigência... Inconformidades nas medidas propostas pelas autoridades superiores. Fazia sentido manter o funcionamento do Centro de Dia quando as visita foram suspensas? Não... Mas o encerramento do Centro de Dia só foi "autorizado" num sábado... Reunimos equipa técnica para transitar os serviços para os domicílios, reorganizar equipa, avisar famílias... E mais uma vez, não tive tempo de preparar os meus utentes desta mudança. Sabendo desde o início que alguns deles não têm condições para tomar banho em casa, nem para comer em casa. Sim, esta realidade existe! Os recursos humanos tinham de ser poupados. E felizmente, contamos com uma rede de apoio social enorme e solidária! E hoje, desde esse dia, que as autarquias locais trabalham connosco, em prol da continuidade dos serviços e cuidados básicos. E por isso, deixo aqui a minha gratidão a estas autarquias! Com os utentes de Centro de Dia mantenho um contacto telefónico semanal, e sinto tanta alegria do outro lado que os meus olhos se enchem de lágrimas de tantas saudades e por sentir tanto do que eles sentem!
De repente... Internamente passa a usar-se máscara. Os utentes deixam de nos reconhecer. E a partir desta imagem, entendem que algo se passa. E são assombrados pelo medo. Embora transmitindo uma mensagem de tranquilidade e de que "é só para vos proteger", faltava muita coisa que lhes dava segurança. O abraço, o toque, o beijinho, o colo... Não temos nada disto há mês e meio. E há cerca de uma semana, por prevenção e pelos sustos que fomos apanhando, restringimos todos os contactos sociais, e o dia-a-dia dos meus utentes acontece no quarto.
A pandemia inverteu também a ordem natural das coisas. Tive de comunicar a uma senhora de 95 anos de idade que o seu filho, o seu "riquinho filho morreu", que se encontrava em França, foi infetado e morreu. O mundo deu uma volta brutal, e dei por mim a ter que comunicar a uma mãe que o seu filho morreu. E isto doeu-me. Doeu-me por saber tanto da sua história de vida e que me torna também da sua família. A partir deste ano, no Verão, não receberei mais aquele senhor alegre que me tratava como família e a cada despedida me dizia "Tome conta da minha mãe. Eu confio em si. Tudo o que lhe fizer falta.". E tudo isto que vos digo obriga-nos a subir mais um degrau neste desafio que é a vida.
Deixei de ver as pessoas com quem trabalho. Falamos muitas vezes por telefone, mas os nossos horários foram reduzidos. Primeiro umas trabalhavam de manhã, outras de tarde; depois outras trabalhavam uma semana e outras trabalhavam outra; e hoje, trabalhamos em regime de internato. Há mensagens e mimos que vamos trocando, mas não há o encontro e o abraço. Mas nisto tudo, vimos o quanto nos unimos. A equipa técnica uniu-se e juntou-se à equipa operacional. Hoje, somos todas iguais. Fazemos o que faz falta, priorizando os cuidados básicos aos nossos utentes. Não há julgamentos. Há respeito pelas decisões e motivações de cada um, pelas fragilidades de cada um. Há olhares que se cruzam e a partilha do sentimento de missão que todos nós temos. E sabem... É isto que nos torna tão especiais. Porque todos somos diferentes. Mas cada um de nós constitui uma peça fundamental do puzzle e da família que é o PASA.
Os contactos com as famílias foram reforçados. Penso que esta é talvez a única tarefa/responsabilidade que mantenho enquanto Gerontóloga Social. Praticamente todos os dias há um contacto a fazer. E se há coisa que aprendi na casa que me acolheu enquanto profissional é o dever de transparência. Procuramos manter as famílias informadas, do bom e do mal. Assisto a algumas videochamadas entre utentes institucionalizados e famílias e não consigo deixar de ficar emocionada com cada uma delas. Já ouvi todo o tipo de perguntas, reações e palavras. Boas e menos boas. Mas o meu papel é este: manter as pessoas informadas e em contacto. Porque isto é o meu possível para garantir o contacto entre os utentes e famílias. É o meu contributo para minimizar a angústia e a saudade que sentem dos seus familiares. É a forma de mostrar às famílias que, apesar da distância física, continuam a fazer parte das decisões e ocorrências.

Com esta partilha procuro dizer-vos que não sei se vai ficar tudo bem, que não sei quando isto vai passar. Sei que isto terá muitas consequências económicas, sociais, familiares. Sei que ninguém está preparado para isto. E sei que, aconteça o que acontecer, todos nós, profissionais do setor social, lutamos com o melhor que temos e podemos.

Uma nota importante: A minha partilha de hoje é dedicada à equipa do Lar S. José do Posto de Assistência Social de Alvarães. Pela sua dedicação, pelo seu empenho e pelo seu altruísmo. A vocês, OBRIGADA!

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Natal... No lar de idosos!

Raras são as pessoas que não me perguntam "O Natal no lar é triste?". Estaria a mentir se afirmasse a 100% que sim. A minha resposta é "Depende...". E sim, depende de muitas coisas. Depende da consciência acerca da vida real, depende da proximidade que têm para com as famílias, depende da sua dependência física, depende daquela que é realmente a vontade de ir a casa ou ficar no lar.
No lar em que trabalho há espírito natalício. Logo no início de Dezembro juntamo-nos, definimos datas das festas dos colaboradores e da festa dos utentes. A decoração de Natal fica igualmente ao nosso encargo e, do meu ponto de vista, cada ano é mais bonita que a anterior! 
O verdadeiro Natal acontece dias antes do dia 24, em que se realiza a festa dos utentes e na qual participam utentes de todas as valências, colaboradores e Direção. Celebra-se eucaristia, há um almoço-convívio, atividades, animação musical, lanche e entrega de prendas. 
No dia da ceia de Natal prepara-se uma grande mesa com decoração a rigor, sobressaindo o vermelho. Há bacalhau, batatas, couves, doces… Nada falta! Há igualmente uma equipa de três elementos escalada para este momento que nesta hora se dedica aos utentes. Há utentes que vão a casa, outros que ficam no lar. Aqueles que ficam no lar anseiam por visitas que nunca chegam, é um facto. Outros frisam que querem passar o Natal no lar porque "é a sua casa". Garanto que, àqueles que ficam, é proporcionada uma noite agradável com tudo o que é característico no Natal! Há saudades de casa, há saudades de quem já partiu, há lágrimas de revolta, há expressões e momentos de tristeza. Mas vamos lá ver: em nossas casas, isto não acontece?



Gostaria ainda de partilhar uma memória. No ano de 2017 passamos por uma crise de pessoal operacional que conduziu à necessidade de reforço nestes dias. No dia 25 de Dezembro de 2017 entrei no lar às 07h00. Eu e mais dois elementos da equipa técnica entramos para dar banhos, servir o pequeno-almoço, pôr a mesa para o almoço e servir o almoço de Natal. Deixei tudo para trás em casa! Fui fazer Natal. E o Natal 2017 foi o melhor Natal da minha vida! Uma equipa pequena, mas unida! Utentes felizes porque "É você que me vai dar banho hoje?". Lapsos na rotina que nos fizeram rir e valorizar o trabalho diário da equipa operacional. Uma única equipa a entregar refeições no domicílio que tive a honra de acompanhar. E sinto-me tão orgulhosa deste feito!

Há visitas que não chegam, é verdade. Mas há outras visitas DIÁRIAS que fazem toda a diferença.
Sim, há Natal no lar de idosos!

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Coração que ama, não tem idade.

É frequente ouvir a expressão "Quem de novo não vai, de velho não escapa". Contudo, nos últimos meses tenho lidado de perto com perdas de pessoas ainda jovens que são apanhadas no abismo da vida e que as leva a partir antes "do suposto". Mas o que eu concluo hoje, é que não tem de haver justiça ou ordem cronológica, nisto que é a morte. A morte faz parte da vida. Mas a verdade é que não estamos preparados para lidar com a morte de quem quer que seja. Poderá até existir uma preparação: alguém que está doente e que os médicos nos alertam "Está por horas". E digo-vos, estas horas são horríveis! A dada altura, estamos esgotados e quase que a desejar que essa hora chegue porque não aguentamos mais que aquele alguém sofra. Porque o que na verdade assusta não é a morte. O que assusta é o sofrimento. Porque para o sofrimento não há palavras de conforto, não há pózinhos mágicos, não há remédios, não há vontades. Há sofrimento e nós não sabemos lidar com isto do sofrimento. Eu não sei. E cada vez que isto me acontece, abre-se uma ferida que demora a fechar e que me faz pensar sobre aquilo que penso sobre a morte. No entanto, hoje quero falar de amor.





Hoje tive de comunicar a uma esposa que o seu marido morreu. Tudo isto começou com uma agudização do estado de saúde do marido, seguido das palavras do médico "O estado é critico. Está por horas", com o envolvimento e apoio incansável da neta, até à notícia do fim. Um casal que acompanho há cinco anos. Que acompanhei todo o processo desde a sua integração em SAD até à institucionalização. Uma dedicação, uma necessidade controlo, apesar dos apesares da vida. Assisti a muitas trocas de beijinhos carinhosos. Fui confidente de muitas situações. E agora, depois de algumas horas, sinto o choro daquela esposa desesperada porque "o meu amor se foi embora". Hoje o coração daquela senhora ficou mais pequenino, mas estou certa de que, apesar deste e dos outros apesares da vida, o amor permanecerá sempre. O amor será sempre um. E enquanto houver amor, será vida por infinitos anos. Sim, porque, como o Toy canta, coração que ama, não tem idade.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Sobre esperança.

Ser Gerontóloga e trabalhar numa IPSS, implica contacto permanente com pessoas. Pessoas que se dividem em utentes, equipa operacional, equipa técnica, Direção, comunidade envolvente, parceiros... Todos aqueles que contribuem para o bom funcionamento, crescimento e estabilidade da instituição. Hoje quero falar-vos de uma jovem que foi minha estagiária, a Adriana.
A Adriana estudava a licenciatura de Educação Social Gerontológica, tendo integrado a instituição em que trabalho no ano de 2016. Era uma jovem tímida. Linda, muito branquinha e um sorriso envergonhado. No seu primeiro dia entrava sol pelas janelas da sala 2. Aceitou a atividade de apresentação e trouxe "A Teia". E ali, do nada, partilhou que a sua avó era a pessoa mais importante da sua vida e que vivia com ela. Logo ali soube o que a motivava por ter integrado a nossa licenciatura. Não falava muito, mas era de um pontualidade, responsabilidade e dedicação sem igual. Na altura das férias da Páscoa pediu-me para não ir algum tempo, pois o seu pai vinha cá e queria muito estar com ele. E nesse momento, partilhou comigo mais um bocadinho da sua história de vida. Fazia atividades individuais e de grupo, tudo reflexo do seu esforço e paixão que nutria por aquilo que fazia. A dada altura fui alertada para a ansiedade que manifestava e cansaço que sentia. Procuramos abrandar o ritmo, mas a Adriana quis sempre mais. A meados de Maio não apareceu. Enviou mensagem mais tarde a dizer que estava doente. Passados alguns dias enviou novamente mensagem que tinha sido diagnosticada leucemia. Foi difícil aceitar o "bicho". A duas semanas de terminar o estágio, a Adriana teve de deixar de lado a vida académica que tanto a preenchia. Foi-se abaixo. Mas, como era tão característico dela, não falava muito do que sentia. Acabou a licenciatura no IPO, depois de deixar claro e pedir esta oportunidade. A Adriana era licenciada em Educação Social Gerontológica. Enviava mensagens de força, a que me respondia dias mais tarde, explicando como a sua doença a impedia de estar tão contactável. Meses mais tarde, recebi um apelo de uma colega de trabalho, amiga em comum, que expunha dificuldades económicas da família dela. Unimos esforços e conseguimos juntar algum dinheiro para lhe dar.
Era fim de tarde. Liguei-lhe e disse "Olá Adriana! É a Melissa. Consegui juntar alguns fundos para a ajudar.". Senti que do outro lado haviam lágrimas a correr, e infinitos obrigadas me foram ditos. Combinamos que iria ter com ela para lhe entregar. Contudo, não foi possível, porque ficou mais doente, tendo acabado por fazer transferência. A Adriana fez transplante e tudo correu bem. Recebi uma mensagem que me mostrava força e dizia que estava bem, prometendo uma visita para matar saudades. A Adriana criou um blog em que partilhava as suas vivências e conselhos, transmitindo desde sempre  fé e esperança: https://leucemia583950878.wordpress.com/2019/05/09/469/?fbclid=IwAR18CQtmQZHIj-CAnk1LMapWbSdwhY2CtNfhNFnP7lcpPJ1CXmhSgE3UKdE



Através da sua página de Facebook tive conhecimento de que teve uma recaída. Foram muitos os esforços da sua família. Sofreu muito. Mesmo não tendo visto, as palavras que partilhava faziam pensar e refletir.
A Adriana faleceu no domingo. E posso afirmar que a Adriana foi uma lutadora. Por apesar de todo o sofrimento inerente ter acredito naquilo que a movia: o amor da família. Estive presente no seu funeral. Não é um momento fácil, mas ela pediu a minha presença.
Quando a vi, senti paz. Consegui compreender aquilo que o Padre disse na missa "A Adriana atingiu a plenitude.". Não tive dúvidas disso. Vestida com o seu traje académico e um ar muito tranquilo. Não haviam pessoas vestidas de preto. Havia jovens, adultos, crianças e mais velhos. Tinha muitas flores. E a cada pessoa que chegava era entregue uma rosa branca que foi entregue no momento da despedida. Impressionou-me a quantidade de jovens com o seu traje académico que lançaram a capa ao chão, pela qual a Adriana passou. A minha capa esteve lá. E eu tenho a certeza de que aquele momento foi como a Adriana o desenhou. Com amor, amizade e calor humano.

Claramente que ninguém fica indiferente a esta história. A Adriana tinha 23 anos. A Adriana era uma lutadora. A Adriana é um exemplo de vida. Apesar de não sermos tão próximas assim, guardarei a Adriana para sempre no meu coração! E cada vez que me lembrar da Adriana, serei esperança.

quinta-feira, 18 de abril de 2019

A benção de dar e receber.

Quem trabalha numa instituição de solidariedade social sabe que, inevitavelmente, se ultrapassa aquela que se chama "barreira profissional". Desde a admissão que somos vistos como alguém importante. Não substituímos as famílias, mas tornamo-nos demasiado importantes na vida daqueles de quem cuidamos. Ou porque arranjamos uma receita médica, ou porque vamos buscar um guardanapo, ou porque somos a única pessoa que faz uma visita, ou porque fazemos uma brincadeira. Por simples coisas, por coisas tão banais na correria do nosso dia-a-dia que cativa.
Tinha acabado a licenciatura há seis meses quando me deram oportunidade de exercer funções enquanto Gerontóloga. Recordo-me na confiança que senti que depositaram em mim, mas recordo-me sobretudo da frase que um membro da Direção da altura me disse "Quisemos ficar consigo porque faz coisas que eu jamais faria. Você toca nos utentes quando fala com eles.". Desde aí, entendi que a minha primeira conquista profissional não era só minha, era de todos os utentes que me viam como "a nossa menina". E toda esta espiral parte da benção de dar e de receber. Espiral esta que jamais será quebrada, porque eu enquanto profissional sou um bocadinho de todos os meus utentes, sobretudo daqueles que já não estão cá.



Sou obrigada a lidar com a partida daqueles que a mim tanto dedicaram, daqueles que abracei com o melhor de mim, daqueles que me disseram nos olhos "Nunca tive uma doutora tão galinha como você", daqueles que no Domingo de Páscoa 2018 percorreram comigo o jardim exterior, daqueles que sorriem à minha chegada, daqueles a quem dei um abraço na ausência de alguém, daqueles que acompanhei quando faltou a saúde, daqueles que me respeitavam e pediam todos os dias para ir buscar o jornal, daqueles que com o apertar da mão me agradeciam por tudo sem emitir qualquer palavra, daqueles que me concederam a benção por saber que casaria com um Manuel. Dói. E a verdade é que ainda não sei lidar com esta distância física. Mas sei que, da mesma maneira que marcaram a minha vida, eu marquei a deles. E é por todas estas lembranças e riquezas imateriais e inexplicáveis que sou tão grande.
E isto que partilho convosco hoje, é a pura benção de dar e receber. Somos pequenos. Somos feitos de lembranças e pessoas. Não somos os mesmos de há uns minutos atrás. Em boa verdade, somos um bocadinho de todos aqueles que passaram por nós.

A linha da frente.

Nos últimos meses a expressão "linha da frente" tornou-se frequente. Nesta linha da frente conta-se com o trabalho, força, dedicaç...